24/05/2008

A Rebelião de Absalão

"Tornará a dar o quadruplicado" (II Sam. 12:6)– foi a sentença dada por Davi a si mesmo sem o saber, ouvindo a parábola do profeta Natã; e de conformidade com sua própria sentença deveria ele ser julgado. Quatro de seus filhos deveriam cair, e a perda de cada um deles seria o resultado do pecado do pai.

O vergonhoso crime de Amnom, o primogênito, permitiu Davi que passasse sem ser punido nem repreendido. A lei pronunciava a pena de morte ao adúltero, e o crime desnatural de Amnom tornou-o duplamente culpado. Mas Davi, condenado por si mesmo pelo seu próprio pecado, deixou de fazer justiça ao transgressor. Durante dois anos completos, Absalão, o protetor natural da irmã tão ignominiosamente prejudicada, escondeu seu propósito de vingança, mas apenas para dar finalmente o golpe com mais segurança. Em uma festa dos filhos do rei, o bêbado e incestuoso Amnom foi morto por ordem de seu irmão.

Duplo juízo recebera Davi. Foi levada a ele esta terrível mensagem: "Absalão feriu a todos os filhos do rei, e nenhum deles ficou. Então o rei se levantou, e rasgou os seus vestidos, e se lançou por terra; da mesma maneira todos os seus servos estavam com vestidos rotos." Os filhos do rei, voltando alarmados para Jerusalém, revelaram a seu pai a verdade; somente Amnom havia sido morto; e eles "levantaram sua voz, e choraram; e também o rei e todos os seus servos choraram com mui grande choro". II Sam. 13:30, 31 e 36. Mas Absalão fugiu a Talmai, rei de Gesur, pai de sua mãe.

Como os outros filhos de Davi, Amnom tinha sido deixado por conta das satisfações egoístas. Ele procurava satisfazer todo pensamento de seu coração, sem tomar em consideração os requisitos de Deus. Apesar de seu grande pecado, Deus tivera muita paciência com ele. Durante dois anos, lhe foi concedida oportunidade para arrependimento; mas ele continuou em pecado, e, com sua culpa sobre si, foi eliminado pela morte, para esperar o terrível tribunal do Juízo.

Davi tinha negligenciado o dever de punir o crime de Amnom, e, por causa da infidelidade do rei e pai, e da impenitência do filho, o Senhor permitiu que os acontecimentos tomassem seu curso natural, e não restringiu Absalão. Quando pais ou governadores negligenciam o dever de punir a iniqüidade, Deus mesmo tomará o caso em mãos. Seu poder repressor será até certo ponto removido, das forças do mal, de modo que surgirá um séquito de circunstâncias que castigará o pecado com o pecado.

Os maus resultados da injusta condescendência de Davi para com Amnom não estavam terminados; pois agora é que começou o afastamento de Absalão, de seu pai. Depois que ele fugiu a Gesur, Davi, compreendendo que o crime de seu filho exigia algum castigo, recusou-lhe permissão para voltar. E isto teve como resultado aumentar em vez de diminuir o emaranhado de males em que o rei viera a ficar envolto. Absalão, enérgico, ambicioso e sem escrúpulos, excluído pelo seu exílio da participação nos negócios do reino, logo se deu a formular planos perigosos.

No fim de dois anos, Joabe resolveu efetuar a reconciliação entre o pai e o filho. E com este objetivo em vista conseguiu os serviços de uma mulher de Tecoa, afamada pela sua sabedoria. Instruída por Joabe, a mulher se fez passar a Davi por uma viúva, cujos dois filhos tinham sido sua única consolação e apoio. Em uma rixa, um destes matou o outro, e agora todos os parentes da família exigiam que o sobrevivente fosse entregue ao vingador do sangue. "Assim", disse a mãe, "apagarão a brasa que me ficou, de sorte que não deixam a meu marido nome, nem resto sobre a Terra." II Sam. 14:7. Os sentimentos do rei foram tocados com esse apelo, e ele assegurou à mulher a proteção real para seu filho.

Depois de arrancar dele repetidas promessas pela segurança do jovem, impetrou a clemência do rei, declarando que ele falara como alguém em falta, por não ter mandado buscar de volta para casa o seu exilado. "Porque", disse ela, "certamente morreremos, e seremos como águas derramadas na terra, que não se ajuntam mais: Deus, pois, lhe não tirará a vida, mas ideará pensamentos, para que se não desterre dEle o Seu desterrado." II Sam. 14:14. Este quadro terno e tocante do amor de Deus para com o pecador, vindo, como veio, de Joabe, o rude soldado, é uma prova notável da familiaridade dos israelitas com as grandes verdades da redenção. O rei, sentindo sua própria necessidade da misericórdia de

Deus, não pôde resistir a este apelo. A Joabe foi dada a ordem: "Vai, pois, e torna a trazer o mancebo Absalão."

A Absalão foi permitido voltar a Jerusalém, mas não para comparecer à corte, ou encontrar seu pai. Davi tinha começado a ver os maus efeitos de sua condescendência para com os filhos; e embora amasse com ternura esse belo e prendado filho, achou necessário que, como uma lição tanto a Absalão como ao povo, fosse manifesta aversão por esse crime. Absalão viveu dois anos em sua própria casa, mas banido da corte. Sua irmã morava com ele, e sua presença conservava viva a lembrança do mal irreparável que sofrera. Na apreciação popular, o príncipe era um herói, em vez de um transgressor. E, tendo esta vantagem, pôs-se a conquistar o coração do povo. Sua aparência pessoal era de tal maneira que captava a admiração de todos os que o viam. "Não havia, porém, em todo o Israel homem tão belo e tão aprazível como Absalão; desde a planta do pé até à cabeça não havia nele defeito algum." II Sam. 14:21 e 25. Não era prudente, da parte do rei, deixar um homem do caráter de Absalão – ambicioso, impulsivo e apaixonado – a acalentar durante dois anos supostas ofensas. E o ato de Davi, permitindo-lhe voltar a Jerusalém e contudo recusando-se a admiti-lo em sua presença, alistou as simpatias do povo a seu favor.

Tendo sempre diante de si a lembrança de sua própria transgressão à lei de Deus, Davi parecia moralmente paralisado; era fraco e irresoluto, quando antes de seu pecado era corajoso e decidido. Sua influência junto ao povo se havia enfraquecido. E tudo isto favorecia os planos de seu filho desnaturado.

Mediante a influência de Joabe, Absalão foi de novo admitido à presença de seu pai; mas, embora houvesse uma reconciliação externa, continuou ele com seus projetos ambiciosos. Assumiu agora uma condição quase régia, tendo carros e cavalos, e cinqüenta homens para correrem diante dele. E, enquanto o rei mais e mais se inclinava a desejar o retiro e a solidão, Absalão cortejava assiduamente o favor popular.

A influência da indiferença e irresolução de Davi estendeu-se a seus subordinados; a negligência e a demora caracterizavam a administração da justiça. Absalão ardilosamente mudava cada causa de descontentamento em proveito próprio. Dia após dia este homem de semblante nobre podia ser visto à porta da cidade, onde uma multidão de suplicantes esperava a fim de apresentar suas queixas e receber justiça. Absalão misturava-se com eles, e escutava seus agravos, exprimindo simpatia pelos seus sofrimentos, e pesar pela ineficiência do governo. Tendo assim ouvido a história de um homem de Israel, o príncipe replicava: "Os teus negócios são bons e retos, porém não tens quem te ouça da parte do rei"; e acrescentava: "Ah, quem me dera ser juiz na Terra! para que viesse a mim todo homem que tivesse demanda ou questão, para que lhe fizesse justiça. Sucedia também que, quando alguém se achegava a ele para se inclinar diante dele, ele estendia a sua mão, e pegava dele, e o beijava."

Fomentado pelas artificiosas insinuações do príncipe, o descontentamento com o governo estava-se espalhando rapidamente. O elogio a Absalão estava nos lábios de todos. Era geralmente considerado como herdeiro do reino; o povo olhava para ele com orgulho, como sendo digno deste elevado cargo, e acendeu-se o desejo de que ele ocupasse o trono.

"Assim furtava Absalão o coração dos homens de Israel." II Sam. 15:4-6. No entanto, o rei, cego pelo afeto para com seu filho, de nada suspeitava. A condição principesca que Absalão havia assumido, era considerada por Davi como tendo em vista honrar a sua corte, ou seja, como uma expressão de alegria pela reconciliação.

Estando preparada a mente do povo para o que havia de seguir-se, Absalão secretamente enviou homens escolhidos por todas as tribos, a fim de combinar as necessárias providências para uma revolta. E agora o manto da devoção religiosa foi tomado para esconder seus intuitos traidores. Um voto feito muito tempo antes, quando ele estava no desterro, devia ser cumprido em Hebrom. Absalão disse ao rei: "Deixa-me ir pagar em Hebrom o meu voto que votei ao Senhor. Porque, morando eu em Gesur, em Síria, votou o teu servo um voto, dizendo: Se o Senhor outra vez me fizer tornar a Jerusalém, servirei ao Senhor." Então o extremoso pai, reconfortado com esta prova de piedade em seu filho, despediu-o com sua bênção. A conspiração estava agora completamente amadurecida. O ato final de Absalão, inspirado na hipocrisia, destinava-se não somente a cegar o rei, mas estabelecer a confiança do povo, e assim levar este à rebelião contra o rei que Deus escolhera.
Absalão partiu para Hebrom, e foram com ele de Jerusalém "duzentos homens convidados, porém iam na sua simplicidade, porque nada sabiam daquele negócio". II Sam. 14:7-11. Estes homens iam com Absalão, mal imaginando que seu amor pelo filho os estava levando à rebelião contra o pai. Chegando em Hebrom, Absalão imediatamente chamou Aitofel, um dos principais conselheiros de Davi, homem de grande fama por sua sabedoria, cuja opinião se julgava ser tão segura e prudente como a de um oráculo. Aitofel aderiu aos conspiradores, e seu apoio fez com que parecesse certo o êxito à causa de Absalão, atraindo sob sua bandeira muitos homens de influência de todas as partes do país. Soando a trombeta de revolta, os espias do príncipe por todo o país espalharam a notícia de que Absalão era rei, e muitos do povo a ele se uniram.

Entrementes foi levado o alarme a Jerusalém, ao rei. Davi despertou-se de súbito, para ver a rebelião irrompendo junto a seu trono. Seu próprio filho, aquele filho que ele amara e em quem confiara, estivera a conspirar para lhe tomar a coroa, e sem dúvida para lhe tirar a vida. Em seu grande perigo, Davi sacudiu a depressão que durante tanto tempo sobre ele repousava, e com o espírito de seus primeiros anos preparou-se para enfrentar esta terrível emergência. Absalão estava arregimentando suas forças, em Hebrom, afastada apenas trinta quilômetros. Os rebeldes logo estariam às portas de Jerusalém.

De seu palácio, Davi olhava para a sua capital – formosa de sítio, e "alegria de toda a Terra, ... a cidade do grande Rei". Sal. 48:2. Estremecia ao pensamento de expô-la à carnificina e devastação. Deveria chamar em seu auxílio os súditos ainda fiéis ao seu trono, e assumir posição para manter sua capital? Deveria permitir que Jerusalém fosse inundada de sangue? Sua decisão estava tomada. Os horrores da guerra não deveriam recair sobre a cidade escolhida. Ele sairia de Jerusalém, e então provaria a fidelidade de seu povo, dando-lhes oportunidade para se arregimentarem em seu apoio. Nesta grande crise, era seu dever a Deus e a seu povo manter a autoridade de que o Céu o investira. O desenlace do conflito ele confiaria a Deus.

Com humildade e tristeza, Davi saiu pela porta de Jerusalém, repelido de seu trono, de seu palácio, da arca de Deus, pela insurreição de seu querido filho. O povo acompanhou-o em um séquito longo e triste, semelhante a um cortejo fúnebre. A guarda pessoal de Davi, constituída pelos quereteus, peleteus, e por seiscentos geteus de Gate, sob o comando de Itai, acompanhou o rei. Mas Davi, com sua abnegação característica, não pôde consentir que esses estrangeiros que tinham procurado sua proteção se envolvessem em sua calamidade. Exprimiu surpresa de que estivessem dispostos a fazer tal sacrifício por ele. Então disse o rei a Itai, o geteu: "Por que irias tu também conosco? Volta, e fica-te com o rei, porque estranho és, e também te tornarás a teu lugar. Ontem vieste, e te levaria eu hoje conosco a caminhar? Pois força me é ir aonde quer que puder ir; volta, pois, e torna a levar teus irmãos contigo, com beneficência e fidelidade."

Itai respondeu: "Vive o Senhor, e vive o rei meu senhor, que no lugar em que estiver o rei meu senhor, seja para morte seja para vida, aí certamente estará também o teu servidor." Estes homens tinham-se convertido do paganismo ao culto de Jeová, e nobremente provaram agora sua fidelidade a seu Deus e a seu rei. Davi, com coração grato, aceitou a dedicação deles à sua causa, que aparentemente ia abaixo, e todos passaram o ribeiro de Cedrom, a caminho do deserto.

De novo o cortejo parou. Um grupo trajado de vestes santas vinha se aproximando. "Eis que também Zadoque ali estava, e com ele todos os levitas que levavam a arca do concerto de Deus." II Sam. 15:19-21 e 24. Os seguidores de Davi olharam para isto como um feliz sinal. A presença daquele símbolo sagrado era para eles um penhor de seu livramento e vitória final. Infundiria coragem ao povo para que se arregimentasse junto ao rei. A ausência da mesma em Jerusalém acarretaria terror aos partidários de Absalão.
À vista da arca, a alegria e a esperança por um breve momento fizeram fremir o coração de Davi. Mas logo outros pensamentos lhe vieram. Como aquele que fora designado para governar a herança de Deus, encontrava-se ele sob uma responsabilidade solene. Não o interesse pessoal, mas sim a glória de Deus e o bem de Seu povo deveriam ser objetivos preeminentes no espírito do rei de Israel. Deus, que habita entre os querubins, disse acerca de Jerusalém: "Este é o Meu repouso" (Sal. 132:14); e, sem autoridade divina, nem sacerdote nem rei tinha o direito de remover dali o símbolo de Sua presença. E Davi compreendeu que seu coração e sua vida deveriam estar em harmonia com os preceitos divinos, aliás a arca seria o meio para ocorrer desastre em vez de êxito. Seu grande pecado estava sempre diante dele. Reconhecia nesta conspiração o justo juízo de Deus. A espada que não deveria afastar-se de sua casa, fora desembainhada. Ele não sabia qual poderia ser o resultado da luta. Não lhe competia remover da capital da nação os estatutos sagrados que incorporavam a vontade de seu divino Soberano, os quais eram a constituição do reino e o fundamento de sua prosperidade.

Ele ordenou a Zadoque: "Torna a levar a arca de Deus à cidade; que, se achar graça nos olhos do Senhor, Ele me tornará a trazer para lá, e me deixará ver a ela e a sua habitação. Se, porém, disser assim: Não tenho prazer em ti; eis-me aqui, faça de mim como parecer bem aos Seus olhos."

Davi acrescentou: "Não és tu porventura o vidente?" – homem designado por Deus para instruir o povo. "Torna, pois, em paz para a cidade, e convosco também vossos dois filhos, Aimaás, teu filho, e Jônatas, filho de Abiatar. Olhai que me demorarei nas campinas do deserto até que tenha novas vossas." II Sam. 15:25-28. Na cidade os sacerdotes poderiam prestar-lhe bom serviço, sabendo dos movimentos e intuitos dos rebeldes, e comunicando-os secretamente ao rei por seus filhos Aimaás e Jônatas.

Voltando os sacerdotes a Jerusalém, uma sombra mais negra recaiu sobre a multidão que partia. Sendo seu rei fugitivo, sendo eles próprios rejeitados, abandonados mesmo pela arca de Deus, estava o futuro obscurecido de terror e maus prenúncios. "E subiu Davi pela subida das Oliveiras, subindo e chorando, e com a cabeça coberta, e caminhava com os pés descalços; e todo o povo que ia com ele cobria cada um a sua cabeça, e subiam chorando sem cessar. Então fizeram saber a Davi, dizendo: Também Aitofel está entre os que se conjuraram com Absalão." Novamente foi Davi obrigado a reconhecer em suas calamidades os resultados de seu próprio pecado. A deserção de Aitofel, o mais hábil e astuto dos dirigentes políticos, foi motivada pela vingança à desonra que sobreveio à família em virtude do dano feito a Bate-Seba, que era sua neta.

"Pelo que disse Davi: Ó Senhor, transtorna o conselho de Aitofel." II Sam. 15:30 e 31. Chegando ao cume do monte, o rei curvou-se em oração, lançando sobre Deus o fardo de sua alma, e suplicando humildemente a misericórdia divina. Sua oração pareceu ser de pronto respondida. Husai, o arquita, conselheiro sábio e hábil, que se mostrara amigo fiel de Davi, veio então a ele com as vestes rotas, e com terra sobre sua cabeça, para lançar sua sorte com o rei destronado e fugitivo. Davi viu, como por iluminação divina, que este homem, fiel e de coração veraz, era aquele de quem se necessitava para servir aos interesses do rei nos conselhos, na capital. Ao pedido de Davi, Husai voltou a Jerusalém para oferecer seus serviços a Absalão, e dissipar o astucioso conselho de Aitofel.

Com este raio de luz nas trevas, o rei e seus seguidores prosseguiram em seu caminho descendo a encosta oriental do Monte das Oliveiras, através de uma região inculta, rochosa e desolada, por entre quebradas bravias, e ao longo de caminhos pedregosos e íngremes, em direção ao Jordão. "E, chegando o rei Davi a Baurim, eis que dali saiu um homem da linhagem da casa de Saul, cujo nome era Simei, filho de Gera, e, saindo, ia amaldiçoando. E apedrejava com pedras a Davi, e a todos os servos do rei Davi, ainda que todo o povo e todos os valentes iam à sua direita e à sua esquerda. E, amaldiçoando-o Simei, assim dizia: Sai, sai, homem de sangue, e homem de Belial. O Senhor te deu agora a paga de todo o sangue da casa de Saul, em cujo lugar tens reinado; já deu o Senhor o reino na mão de Absalão teu filho; e eis-te agora na tua desgraça, porque és um homem de sangue." II Sam. 16:5-8.

Na prosperidade de Davi, Simei não mostrara, quer por palavras quer por atos, que não era um súdito leal. Mas, na aflição do rei, este benjaminita revelou seu verdadeiro caráter. Honrara a Davi em seu trono, mas amaldiçoara-o em sua humilhação. Vil e egoísta, olhava aos outros como sendo do mesmo caráter que ele, e, inspirado por Satanás, saciava seu ódio naquele a quem Deus castigara. O espírito que leva o homem a triunfar sobre alguém que está em aflição, a ultrajá-lo e angustiá-lo, é o espírito de Satanás.

As acusações de Simei contra Davi eram inteiramente falsas – uma calúnia vil e perversa. Davi não fora culpado de mal a Saul ou à sua casa. Quando Saul estava inteiramente em seu poder, e o poderia ter matado, simplesmente cortou a fímbria de sua veste, e censurou a si próprio por mostrar mesmo este desrespeito pelo ungido do Senhor.

Do respeito sagrado de Davi pela vida humana, prova notável fora dada, mesmo quando ele próprio era perseguido como animal feroz. Um dia, quando se achava escondido na caverna de Adulão, volvendo-se seus pensamentos à imperturbável liberdade de sua vida de rapaz, exclamou o fugitivo: "Quem me dera beber da água da cisterna de Belém, que está junto à porta!" Belém estava naquele tempo nas mãos dos filisteus; mas três homens valorosos do grupo de Davi romperam através da guarda, e trouxeram da água de Belém a seu senhor. Davi não a pôde beber. "Guarda-me, ó Senhor", exclamou ele, "de que tal faça; beberia eu o sangue dos homens que foram a risco da sua vida?" II Sam. 23:13-17. E ele reverentemente derramou a água como oferta a Deus. Davi tinha sido um homem de guerra, e grande parte de sua vida fora despendida entre cenas de violência; mas, de todos os que passaram por essa prova, não muitos, em verdade, foram tão pouco afetados pela sua influência insensibilizadora e desmoralizadora, como o foi Davi.

Abisai, sobrinho de Davi, um dos mais valentes dos seus capitães, não pôde escutar com paciência as palavras insultantes de Simei. "Por que amaldiçoaria este cão morto ao rei meu senhor?" exclamou ele. "Deixa-me passar, e lhe tirarei a cabeça." Mas o rei proibiu-lho. "Eis que meu filho", disse ele, "procura a minha morte; quanto mais ainda este benjamita? Deixai-o, que amaldiçoe; porque o Senhor lho disse. Porventura o Senhor olhará para a minha miséria, e o Senhor me pagará com bem a sua maldição deste dia." II Sam. 16:9-12.

A consciência estava a proferir verdades amargas e humilhantes a Davi. Enquanto seus súditos fiéis se admiravam com a sua súbita mudança de sorte, não era isto mistério para o rei. Ele muitas vezes tivera pressentimentos de uma hora como aquela. Admirara-se de que Deus tivesse tanto tempo suportado seus pecados, e retardado o castigo merecido. E agora, em sua fuga precipitada e triste, com os pés descalços, com as vestes reais mudadas em saco, com as lamentações dos que o acompanhavam a despertar os ecos das colinas, pensava ele em sua amada capital – o lugar que fora o cenário de seu pecado; e, lembrando-se da bondade e longanimidade de Deus, não estava inteiramente sem esperança. Sentia que o Senhor ainda o trataria com misericórdia.

Muito malfeitor tem desculpado seu pecado, apontando para a queda de Davi; mas, quão poucos há que manifestam o arrependimento e a humildade de Davi! Quão poucos suportam a reprovação e o castigo, com a paciência e coragem que ele manifestou! Confessara seu pecado, e durante anos procurara cumprir seu dever como fiel servo de Deus; trabalhara para o reerguimento de seu reinado, e sob seu governo este atingira a uma força e prosperidade jamais alcançadas antes. Reunira grandes suprimentos de materiais para a edificação da casa de Deus; e agora deveria todo o trabalho de sua vida ser dissipado? Deveriam os resultados de anos de uma labuta consagrada, de trabalho criativo, dedicação, aptidão de estadista, passar para as mãos de seu filho descuidado e traidor, que não tinha consideração pela honra de Deus nem pela prosperidade de Israel? Quão natural teria parecido murmurar Davi contra Deus nesta grande aflição!

Mas ele viu a causa de sua inquietação em seu próprio pecado. Das palavras do profeta Miquéias transpira o espírito que animava o coração de Davi. "Se morar nas trevas, o Senhor será a minha luz. Sofrerei a ira do Senhor, porque pequei contra Ele, até que julgue a minha causa, e execute o meu direito." Miq. 7:8 e 9. E o Senhor não abandonou Davi. Este capítulo de sua experiência, em que sob o mais cruel dano e insulto, ele se mostra humilde, abnegado, generoso e submisso, é um dos mais nobres em toda a sua experiência. Nunca foi o governador de Israel com mais verdade grande à vista do Céu do que nesta hora de sua mais profunda humilhação exterior.

Tivesse Deus permitido que Davi continuasse em pecado sem ser condenado, e permanecesse em paz e prosperidade em seu trono enquanto transgredia os preceitos divinos, e os cépticos e incrédulos teriam motivo para citar a história de Davi como mácula à religião da Bíblia. Mas, na experiência por que Ele fez Davi passar, o Senhor mostra que não pode tolerar nem desculpar o pecado. E a história de Davi nos habilita a ver também o grande objetivo que Deus tem em vista com Seu trato com o pecado; habilita-nos a divisar, mesmo através dos mais tenebrosos juízos, a realização de Seus intuitos de misericórdia e beneficência. Ele fez Davi passar pela vara, mas não o destruiu; a fornalha é para purificar, mas não para consumir. Diz o Senhor: "Se profanarem os Meus preceitos, e não guardarem os Meus mandamentos, então visitarei com vara a sua transgressão, e a sua iniqüidade com açoites. Mas não retirarei totalmente dele a Minha benignidade, nem faltarei à Minha fidelidade." Sal. 89:31-33.

Logo depois que Davi saiu de Jerusalém, Absalão e seu exército entraram, e sem qualquer luta tomaram posse da fortaleza de Israel. Husai achou-se entre os primeiros a saudar o novo rei; e o príncipe ficou surpreso e satisfeito com a aquisição do velho amigo e conselheiro de seu pai. Absalão estava confiante no êxito. Até ali seus planos tinham sido bem-sucedidos, e, ansioso por fortalecer o trono e conseguir a confiança da nação, recebeu com alegria a Husai em sua corte.
Absalão estava agora cercado de uma grande força; mas esta era pela maior parte constituída de homens inexperientes na guerra. Ainda não tinham sido levados em conflito. Aitofel bem sabia que a situação de Davi estava longe de ser desesperadora. Uma grande parte da nação ainda estava fiel a ele; estava rodeado de guerreiros experimentados, que eram fiéis ao seu rei, e seu exército era comandado por generais hábeis e experientes. Aitofel sabia que, depois da primeira explosão de entusiasmo em favor do novo rei, viria uma reação. Caso falhasse a revolta, Absalão poderia ser capaz de conseguir reconciliação com seu pai; então Aitofel, como seu principal conselheiro, seria tido na conta do mais culpado pela rebelião; sobre ele recairia o mais severo castigo. Para impedir que Absalão retrocedesse, Aitofel o aconselhou a um ato que, aos olhos da nação inteira, tornaria impossível a reconciliação. Com engano infernal, este estadista, astuto e sem escrúpulos, insistiu com Absalão para acrescentar o crime de incesto ao de rebelião. À vista de todo o Israel deveria tomar para si as concubinas de seu pai, segundo o costume das nações orientais, declarando assim que sucedia a seu pai no trono. E Absalão levou a efeito a vil sugestão. Assim, cumpriu-se a palavra de Deus a Davi, pelo profeta: "Eis que suscitarei da tua mesma casa o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres perante os teus olhos, e as darei a teu próximo. … Porque tu o fizeste em oculto, mas Eu farei este negócio perante todo o Israel e perante o Sol." II Sam. 12:11 e 12. Não que Deus instigasse tais atos de impiedade; mas, por causa do pecado de Davi, Ele não exerceu Seu poder para os impedir.

Aitofel fora tido em grande estima pela sua sabedoria, mas era destituído do esclarecimento que vem de Deus. "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria" (Prov. 9:10); e este, Aitofel não possuía, aliás dificilmente poderia ter baseado o êxito da traição no crime de incesto. Homens de coração corrupto tramam a impiedade, como se não houvesse Providência a dirigir superiormente as coisas, a fim de obstar seus desígnios; mas "Aquele que habita nos Céus se rirá; o Senhor zombará deles." Sal. 2:4. O Senhor declara: "Não quiseram o Meu conselho e desprezaram toda a Minha repreensão. Portanto comerão do fruto do seu caminho, e fartar-se-ão dos seus próprios conselhos. Porque o desvio dos simples os matará, e a prosperidade dos loucos os destruirá." Prov. 1:30-32.

Tendo tido êxito na trama destinada a conseguir sua segurança, Aitofel insistiu com Absalão sobre a necessidade de ação imediata contra Davi. "Deixa-me escolher doze mil homens", disse ele, "e me levantarei, e seguirei após Davi esta noite. E irei sobre ele, pois está cansado e fraco das mãos; e o espantarei, e fugirá todo o povo que está com ele; e então ferirei o rei só. E farei tornar a ti todo o povo." Este plano foi aprovado pelos conselheiros do rei. Caso houvesse sido seguido, certamente Davi teria sido morto, a menos que o Senhor interviesse diretamente para o salvar. Uma sabedoria mais elevada, porém, do que a do afamado Aitofel, estava a dirigir os acontecimentos. "O Senhor o ordenara, para aniquilar o bom conselho de Aitofel, para que o Senhor trouxesse o mal sobre Absalão." II Sam. 17:1-3 e 14.

Husai não fora chamado ao conselho, e não se intrometeria sem que isto lhe fosse pedido, receoso de vir sobre si a suspeita de ser espião; mas, depois que se dispersou a assembléia, Absalão, que tinha grande consideração pelo juízo do conselheiro de seu pai, submeteu à sua apreciação o plano de Aitofel. Husai viu, que, se o plano proposto fosse seguido, Davi estaria perdido. E disse: "O conselho que Aitofel esta vez aconselhou não é bom. Disse mais Husai: Bem conheces a teu pai, e a seus homens, que são valorosos, e que estão com o espírito amargurado, como a ursa no campo, roubada dos cachorros; também teu pai é homem de guerra, e não passará a noite com o povo. Eis que agora está escondido nalguma cova, ou em qualquer outro lugar"; ele argumentava que, se as forças de Absalão perseguissem a Davi, não fariam prisioneiro ao rei; e, se sofressem um revés, isto tenderia a desanimá-las, e faria grande mal à causa de Absalão. "Porque", disse ele, "todo o Israel sabe que teu pai é valoroso, e homens valentes os que estão com ele." E sugeriu um plano atraente pela sua natureza vaidosa e egoísta, propenso à exibição de poder: "Eu, porém, aconselho que com toda a pressa se ajunte a ti todo o Israel desde Dã até Berseba, e multidão como areia do mar; e que tu em pessoa vás à peleja. Então iremos a ele, em qualquer lugar que se achar, e facilmente viremos sobre ele, como o orvalho cai sobre a terra; e não ficará dele e de todos os homens que estão com ele nem ainda um só. E, se ele se retirar para alguma cidade, todo o Israel trará cordas àquela cidade, e arrastá-la-emos até ao ribeiro, até que não se ache ali nem uma só pedrinha.


"Então disse Absalão a todos os homens de Israel: Melhor é o conselho de Husai, o arquita, do que o conselho de Aitofel." II Sam. 17:10-14. Mas houve um que não foi enganado – um que previu claramente o resultado deste erro fatal de Absalão. Aitofel compreendeu que a causa dos rebeldes estava perdida. E viu que, qualquer que pudesse ser a sorte do príncipe, não havia esperança para o conselheiro que instigara os seus maiores crimes. Aitofel havia animado Absalão na rebelião; aconselhara-o à mais abominável impiedade, à desonra de seu pai; sugerira a morte de Davi, e fizera os planos para a sua realização; suprimira a última possibilidade de reconciliação com o rei; e agora outro era preferido a ele, mesmo por Absalão. Cheio de inveja, irado, e desesperado, Aitofel "foi para sua casa e para a sua cidade, e pôs em ordem a sua casa, e se enforcou, e morreu". II Sam. 17:23. Tal foi o resultado da sabedoria de quem, com todos os seus elevados dotes, não fez de Deus o seu conselheiro. Satanás engoda os homens com promessas lisonjeiras; mas no fim será descoberto por toda alma que "o salário do pecado é a morte". Rom. 6:23.

Husai, não tendo certeza de que seu conselho seria seguido pelo versátil rei, não perdeu tempo em avisar Davi para que escapasse para além do Jordão, sem demora. Husai enviou esta mensagem aos sacerdotes, os quais deveriam transmiti-la por seus filhos: "Assim e assim aconselhou Aitofel a Absalão e aos anciãos de Israel; porém assim e assim aconselhei eu. Agora, pois… não passes esta noite nas campinas do deserto, mas passa depressa à outra banda, para que o rei e todo o povo que com ele está não seja devorado." II Sam. 17:15 e 16.

Houve suspeitas contra os moços, e foram perseguidos; todavia conseguiram levar a efeito sua perigosa missão. Davi, fatigado pelas labutas e mágoas depois daquele primeiro dia de fuga, recebeu a mensagem de que deveria atravessar o Jordão naquela noite, pois que seu filho procurava sua vida.

Quais seriam os sentimentos daquele pai e rei, tão cruelmente ultrajado, neste perigo terrível? Como homem valoroso, homem de guerra, e rei, cuja palavra era lei, traído por seu filho, a quem amara, com quem fora condescendente, e em quem imprudentemente confiara; ofendido e abandonado pelos súditos que a ele estavam ligados pelos mais fortes laços de honra e lealdade – com que palavras derramou Davi os sentimentos de sua alma? Na hora de sua mais negra prova, o coração de Davi estava firme em Deus, e ele cantou:

· "Senhor, como se têm multiplicado os meus adversários!
· São muitos os que se levantam contra mim.
· Muitos dizem da minha alma:
· Não há salvação para ele em Deus.
· Mas Tu, Senhor, és um escudo para mim,
· A minha glória, e o que exalta a minha cabeça.
· Com a minha voz clamei ao Senhor,
· Ele ouviu-me desde o Seu santo monte.
· Eu me deitei e dormi;
· Acordei, porque o Senhor me sustentou.
· Não terei medo de dez milhares de pessoas
· Que se puseram contra mim ao meu redor. …
· A salvação vem do Senhor;
· Sobre o Teu povo seja a Tua bênção." Sal. 3:1-8.

Davi e todo o seu grupo – guerreiros e estadistas, velhos e jovens, mulheres e crianças – nas trevas da noite atravessaram o rio profundo e correntoso. "Pela luz da manhã nem ainda faltava um só que não passasse o Jordão." II Sam. 17:22.

Davi e sua força recuaram a Maanaim, que tinha sido a sede real de Isbosete. Esta era uma cidade poderosamente fortificada, rodeada de uma região montanhosa, favorável à retirada em caso de guerra. O território era bem provido, e o povo era amigo da causa de Davi. Ali muitos partidários se uniram a ele, enquanto abastados chefes de tribos vizinhas traziam abundantes presentes de provisões, e outros suprimentos necessários.

O conselho de Husai conseguira seu objetivo, obtendo para Davi oportunidade para escapar; mas o príncipe, precipitado e impetuoso, não pôde por muito tempo ser restringido, e logo se pôs em perseguição de seu pai. "E Absalão passou o Jordão, ele e todo o homem de Israel com ele." II Sam. 17:24. Absalão constituiu comandante-geral de suas forças a Amasa, filho de Abigail, irmã de Davi. Seu exército era grande, mas indisciplinado, e mal preparado para competir com os soldados experimentados de seu pai.

Davi dividiu suas forças em três batalhões sob o comando de Joabe, Abisai, e Itai, o geteu. Tinha sido seu propósito conduzir ele mesmo seu exército ao campo; mas contra isto os oficiais do exército, os conselheiros e o povo veemente protestaram. "Não sairás", disseram, "porque, se formos obrigados a fugir, não porão o coração em nós; e, ainda que metade de nós morra, não porão o coração em nós, porque ainda, tais como nós somos, ajuntarás dez mil. Melhor será, pois, que da cidade nos sirvas de socorro. Então Davi lhes disse: O que bem parecer aos vossos olhos, farei." II Sam. 18:3 e 4.

Dos muros da cidade, as longas fileiras do exército rebelde estavam bem à vista. O usurpador era acompanhado de uma hoste vasta, em comparação com a qual a força de Davi não parecia senão um punhado. Mas, olhando o rei para as forças oponentes, o pensamento máximo em seu espírito não era a coroa e o reino, nem sua própria vida, que dependia da ação da batalha. O coração do pai estava cheio de amor e compaixão para com seu filho rebelde. Saindo em fileiras o exército pelas portas da cidade, Davi animou os seus fiéis soldados, mandando-lhes que saíssem confiantes em que o Deus de Israel lhes daria a vitória. Mas mesmo agora ele não pôde reprimir seu amor para com Absalão. Quando Joabe, o vencedor em cem campos de batalha, conduzindo a primeira coluna, passou pelo seu rei, curvou a altiva cabeça para ouvir sua última mensagem, que dizia com voz trêmula: "Brandamente tratai por amor de mim ao mancebo, a Absalão." E Abisai e Itai receberam a mesma incumbência: "Brandamente tratai por amor de mim ao mancebo, a Absalão." Mas a solicitude do rei, parecendo declarar que Absalão lhe era mais caro do que seu reino, e mais caro mesmo do que os súditos fiéis ao seu trono, apenas aumentou a indignação dos soldados contra o filho desnaturado.

O local da batalha foi um bosque próximo do Jordão, em que o grande número do exército de Absalão apenas lhe era uma desvantagem. Por entre os pontos espessos e os pantanais da floresta, aquelas tropas indisciplinadas se tornaram confusas e não mais podiam ser dirigidas. E "foi ferido o povo de Israel, diante dos servos de Davi; e naquele mesmo dia houve ali uma grande derrota de vinte mil". II Sam. 18:5 e 7. Absalão, vendo que era perdida a causa, voltara-se para fugir, quando a cabeça lhe foi apanhada entre os ramos de uma árvore larga; e, saindo seu mulo de debaixo dele, foi deixado desamparadamente suspenso, como presa a seus inimigos. Em tal condição foi encontrado por um soldado, que, de medo de desagradar o rei, poupou Absalão, mas referiu a Joabe o que vira. Joabe não se restringiu por quaisquer escrúpulos. Havia favorecido a Absalão, tendo duas vezes conseguido sua reconciliação com Davi; e a confiança assim manifesta para com ele fora vergonhosamente traída. Se não fossem as vantagens alcançadas por Absalão mediante a intercessão de Joabe, esta rebelião, com todos os seus horrores, jamais poderia ter ocorrido. Agora estava nas mãos de Joabe destruir com um golpe o instigador de todo este mal. "E tomou três dardos, e traspassou com ele o coração de Absalão. … E tomaram a Absalão, e o lançaram no bosque, numa grande cova, e levantaram sobre ele um mui grande montão de pedras."

Assim pereceram os instigadores da rebelião em Israel. Aitofel morrera pela sua própria mão. O príncipe Absalão, cuja gloriosa beleza fora o orgulho de Israel, foi eliminado no vigor da juventude, sendo seu cadáver arremessado em uma cova, e coberto com um monte de pedras, em sinal de ignomínia eterna. Em vida, construíra Absalão para si um custoso monumento no vale do rei; mas a única lembrança que assinalou a sua sepultura foi o monte de pedras no deserto.

Morto o chefe da rebelião, Joabe chamou novamente seu exército, ao som da trombeta, da perseguição à hoste fugitiva, e logo foram expedidos mensageiros para levarem a notícia ao rei.

A sentinela sobre o muro da cidade, olhando para o campo de batalha, descobriu um homem a correr sozinho. Logo um segundo veio a ser visto. Aproximando-se o primeiro, o atalaia disse ao rei, que estava a esperar junto à porta: "Vejo o correr do primeiro, que parece ser o correr de Aimaás, filho de Zadoque. Então disse o rei: Este é homem de bem, e virá com boas novas. Gritou pois Aimaás, e disse ao rei: Paz. E inclinou-se ao rei com o rosto em terra, e disse: Bendito seja o Senhor, que entregou os homens que levantaram a mão contra o rei meu senhor." À ansiosa pergunta do rei: "Vai bem com o mancebo, com Absalão?" Aimaás deu uma resposta evasiva.

O segundo mensageiro chegou, clamando: "Anunciar-se-á ao rei meu senhor que hoje o Senhor te vingou da mão de todos os que se levantaram contra ti." Novamente veio dos lábios do pai a pergunta que o absorvia: "Vai bem com o mancebo, com Absalão?" Sem poder esconder a triste notícia, o arauto respondeu: "Sejam como aquele mancebo os inimigos do rei meu senhor, e todos os que se levantam contra ti para mal." Era bastante. Davi não fez mais perguntas, mas com a cabeça baixa "subiu à sala que estava por cima da porta, e chorou; e andando, dizia assim: Meu filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão! quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!" II Sam. 18:14-33.

O exército vitorioso, voltando do campo de batalha, aproximou-se da cidade, despertando suas aclamações de triunfo ecos nas colinas. Mas, ao entrarem pelas portas da cidade, findaram-se as aclamações, arrearam-se as bandeiras, e com o olhar baixo avançaram mais como os que sofreram derrota do que como vencedores; porque o rei não os estava esperando a fim de dar-lhes boas-vindas, mas do quarto em cima da porta ouvia-se o clamor de seu pranto: "Meu filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão! quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!" II Sam. 18:33.

"Então a vitória se tornou naquele mesmo dia em tristeza para todo o povo, porque naquele mesmo dia o povo ouvira dizer: Mui triste está o rei por causa de seu filho. E aquele mesmo dia o povo entrou às furtadelas na cidade, como o povo de vergonha se escoa quando foge da peleja." II Sam. 19:2 e 3.

Joabe ficou cheio de indignação. Deus lhes dera motivo de triunfo e alegria; a maior rebelião que já fora conhecida em Israel tinha sido suprimida; e no entanto esta grande vitória se transformara em lamentação por aquele cujo crime custara o sangue de milhares de bravos. O rude e áspero capitão encaminhou-se para a presença do rei, e disse com ousadia: "Hoje envergonhaste as caras de todos os teus servos, que livraram hoje a tua vida, e a vida de teus filhos, e de tuas filhas, ... amando tu aos que te aborrecem, e aborrecendo aos que te amam. Porque hoje dás a entender que nada valem para contigo capitães e servos; porque entendo hoje que se Absalão vivesse, e todos nós hoje fôssemos mortos, então bem te parecera aos teus olhos. Levanta-te, pois, agora; sai, e fala conforme ao coração de teus servos. Porque pelo Senhor te juro que, se não saíres, nem um só homem ficará contigo esta noite; e maior mal te será isto do que todo o mal que tem vindo sobre ti desde a tua mocidade até agora." II Sam. 19:5-7.

Severa e mesmo cruel como foi a censura ao rei, ferido em seu coração, não se ressentiu Davi com a mesma. Vendo que seu general tinha razão, desceu à porta, e com palavras de coragem e aprovação saudou seus bravos soldados enquanto passavam diante dele.

Palestina e Egito

Na luta entre os vários grupos observamos que a maioria deles ostenta nome amoritas, conseqüência de grandes migrações que foram uma das causas da queda de Ur. Esta entrada em cena dos amoritas (ou amorreus) assinala um fato fundamental na história da época.
Em sumério são chamados de MAR.TU, em acádico AMURRU, significando "ocidentais" ou "povo do oeste", chamados também de semitas do oeste.
A caracterização dos amoritas é feita em uma epopéia da época que, descrevendo o mito do casamento do seu deus Amurru, diz: "É um homem que desenterra trufas [espécie de cogumelo comestível] no sopé das montanhas, que não sabe dobrar os joelhos para cultivar a terra, que come carne crua, que não tem casa durante a vida, e não é sepultado após a morte".
Durante muito tempo existiu certo consenso entre os especialistas, baseados em sátiras como esta dos sumérios, citada acima, e em uma visão romântica do nomadismo, típica do século XIX, de que os amoritas eram nômades que invadiram a Mesopotâmia e também a Palestina vindos do deserto siro-arábico.
Hoje, porém, não é mais possível sustentar esta posição, pois o que se descobriu nos últimos anos é que os amoritas são sedentários do norte da Mesopotâmia, vivendo da agricultura e da criação de gado. Isto é testemunhado pelas centenas de povoados espalhados do Eufrates até os vales dos rios Khabur e Balikh e datados pelos arqueólogos como existentes desde o Calcolítico. O crescimento populacional dos amoritas deve ter provocado a ampliação de seus territórios e a ocupação de várias cidades da região mesopotâmica. Além do que, muitas das mudanças ocorridas em todo o Antigo Oriente Médio que eram atribuídas a invasões mal documentadas de povos, podem ser explicadas, hoje, mais cientificamente, pelas mudanças climáticas na região, sujeita a períodos de secas prolongadas e devastadoras[3].
É assim que se chega à luta pela hegemonia na Baixa Mesopotâmia, onde a disputa era entre as dinastias de Isin e Larsa, enquanto na Alta Mesopotâmia a luta se dava entre Assur e Mari, também governadas por amoritas.
Mapa Cronológico do Antigo Oriente Médio II
[4]
Período Arqueológico
Bronze Médio
Bronze Recente
Ferro Antigo
Ferro Recente
Mesopotâmia do Norte
Assírio antigo
Assírio médio
Assírio médio
Assírio recente
Shamsi-Adad
Mitani


Cartas de Mari



Mesopotâmia do Sul
Isin Larsa
Cassita

Domínio assírio
Babilônico antigo
Babilônico médio
Babilônico médio

Síria/Palestina
Influências do Egito
Domínio egípcio
Israel
Israel
Hicsos
Cartas de Tell el-Amarna
Povos do mar
Estados fenícios

Israelitas

Estados arameus e neo-hititas
Irã/Golfo Pérsico
Elamita antigo
Elamita médio

Medos
Godin III
Tribos iranianas

Invasões de Urartu
Dilmun


Invasões assírias
Anatólia
Comércio da antiga Assíria
Hitita

Urartu
Hitita antigo
Frígios
Frígios
Frígios



Lídios
Desenvolvimento cultural e técnico
Carros
Rodas com raios
Alfabeto primitivo
Camelos
Galinhas
Vidro
Cerâmica vidrada
Ferro fundido
Cavalaria
Algodão
Moedas
Latão
Aramaico
No final deste período a cidade que emergiu com maior poder foi Babilônia. Sob a III dinastia de Ur fora governada por um ensi e progressivamente seu poder cresceu, tornando-se um principado independente e controlando algumas cidades vizinhas.
Em 1792 Hammurabi (1792-1750 a.C.) subiu ao trono de Babilônia. Consolidou sua posição frente aos vizinhos da Baixa Mesopotâmia e em seguida estendeu seu domínio a Mari, aos elamitas, assírios e gútios. No 31º ano de seu reinado Hammurabi já era senhor da Suméria e de Akkad.
As terras na Babilônia pertenciam ao Estado, aos templos e a particulares. As terras do Estado eram exploradas por arrendatários, colonos, homens de corvéia e funcionários do Estado que recebiam glebas em troca de serviços prestados.
O comércio era dominado pelos tamkarum, espécie de mercadores itinerantes e corretores, que agiam em nome do Estado, mas acumulando também fortunas particulares. O Estado intervinha em todos os setores da economia, determinando preços, contratos de trabalho, salários etc.
Na Mesopotâmia governada pelos babilônios da época de Hammurabi temos populações que, na sua maioria, falam línguas semíticas, como o assírio, o babilônio e os idiomas semitas do noroeste. No campo viviam agricultores sedentários e nômades. Nas cidades, pequenos artesãos e comerciantes. As regiões intermediárias eram habitadas também pelos amoritas, além de haver grupos hurritas.
Hammurabi desenvolveu uma legislação que ficou famosa através de seu conhecido
código. Através dele podemos conhecer a estrutura social da época. Três classes compunham a sociedade: os ricos (awilum), o povo (mushkenum) e os escravos. Além disso havia os prisioneiros de guerra (asiru) e os deportados, categorias estas sem nenhum estatuto jurídico e que viviam a verdadeira escravidão.
O casamento era monogâmico, mas existia o concubinato, especialmente quando a esposa era estéril. E interessante é observar que a mulher casada tinha certa autonomia, pois podia exercer diversas profissões, demandar em juízo e até assumir cargos públicos.
(Estas são) as sentenças de justiça, que Hammurabi, o rei forte, estabeleceu e que fez o país tomar um caminho seguro e uma direção boa.
Eu (sou) Hammurabi, o rei perfeito. Para com os cabeças-pretas, que Enlil me deu de presente e dos quais Marduk me deu o pastoreio, não fui negligente, nem deixei cair os braços; eu lhes procurei sempre lugares de paz, resolvi dificuldades graves, fiz-lhes aparecer a luz. Com a arma poderosa que Zababa e Ishtar me outorgaram, com a sabedoria que Ea me destinou, com a habilidade que Marduk me deu, aniquilei os inimigos em cima e embaixo, acabei com as lutas, promovi o bem-estar do país (...).
Para que o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país em Babel, a cidade cuja cabeça An e Enlil levantaram, na Esagila, o templo cujos fundamentos são tão firmes como o céu e a terra, para proclamar as leis do país, para fazer direito aos oprimidos, escrevi minhas preciosas palavras em minha estela e coloquei-a diante de minha estátua de rei da justiça (...).
Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante da minha estátua de rei da justiça, leia, atentamente, minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate! (...)
Que nos dias futuros, para sempre, um rei que surgir no país observe as palavras de justiça que escrevi em minha estela, que ele não mude a lei do país que eu promulguei, as sentenças do país que eu decidi, que ele não altere os meus estatutos!
(Trecho do Epílogo do Código de Hammurabi na tradução de EMANUEL BOUZON, O Código de Hammurabi. Introdução, tradução do texto cuneiforme e comentários, 4a edição totalmente revista e melhorada, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 222-223).
A literatura e as artes alcançaram grande esplendor na época de Hammurabi. Havia muitas escolas de escribas ao redor de palácios e templos. A cultura suméria foi organizada e preservada, a história começou a se desenvolver sob a forma de listas reais e a
literatura religiosa cresceu enormemente.
1.3. A Palestina e o Egito de 3000 a 1700 a.C.

Começaremos a falar da Palestina na Idade do Bronze Antigo (3200-2050 a.C.), quando houve um notável progresso na vida urbana, na indústria (sobretudo na cerâmica) e um aumento geral da população, provável resultado da sedentarização de grupos novos que se estabeleciam na região.
Muitas das cidades que conhecemos através da história bíblica já existiam, como Jericó, Meguido, Bet-Shan, Gezer, Ai, Laquish. No centro e no norte da Palestina é que se situa a maior parte destas cidades, sendo mais rarefeita a população no sul.
A agricultura era a atividade básica. Cultivavam, nesta época, o trigo, a cevada, lentilhas, favas. Havia também a cultura da oliveira e da amendoeira. A vinha teria sido ali introduzida nesta época.
O comércio funcionava em direção à Síria do norte e do Egito. Os utensílios de pedra dominavam ainda, embora já se começasse a fabricação de armas de cobre.
Na Síria, a cidade de Biblos conheceu um progresso semelhante e a influência egípcia tornou-se marcante graças ao comércio marítimo.
Podemos chamar convencionalmente estes povos de cananeus. Sua língua era um semítico do noroeste, provavelmente a ascendente do cananeu falado nos tempos israelitas, do qual o hebraico bíblico é uma derivação.
Por volta de 2300 a.C. esta civilização sofreu forte decadência. Até a década de 70 do século XX se acreditava que povos teriam invadido, a partir do norte, seu território e as cidades teriam sido destruídas, algumas bem violentamente. O mesmo aconteceu na Síria. O curioso é que se observa que seus novos habitantes não reconstruíram imediatamente as cidades: ou acamparam sobre as ruínas, ou viveram em cavernas e quando reconstruíram as casas estas eram bastante modestas, e isto depois de alguns séculos de ocupação. Só por volta de 1900 a.C. é que há sinais de nova vida urbana. Dizia-se que possivelmente eram estes povos os mesmos amoritas ou semitas do oeste que invadiram também a Mesopotâmia. Hoje se reconhece que as mudanças ocorridas então se devem muito mais a mudanças climáticas do que a qualquer entrada de povos na região.
A Palestina conheceu a sua fase antiga mais próspera entre os anos de 1800 e 1550 a.C. Cidades populosas e bem guarnecidas, cercadas por poderosas muralhas floresceram, tais como Hazor, Taanak, Meguido, Siquém, Jericó, Jerusalém, Bet-Shemesh, Gezer, Tell Beit Mirsim, Tell el-Duweir, Tell el-Farah do sul etc. Já a Transjordânia não teve civilização sedentária até cerca de 1300 a.C. e o Negueb até o século X a.C.